HOMILIA DOMINICAL E REFLEXÃO: DOM JOÃO CARLOS CARDEAL VITALLI
23º Domingo do Tempo Comum
(Lc 14, 25-33)
Naquele
tempo, 25grandes multidões acompanhavam Jesus. Voltando-se, ele
lhes disse: 26“Se alguém vem a mim, mas não se desapega de seu
pai e sua mãe, sua mulher e seus filhos, seus irmãos e suas irmãs e até da sua
própria vida, não pode ser meu discípulo. 27Quem não carrega
sua cruz e não caminha atrás de mim, não pode ser meu discípulo. 28Com
efeito, qual de vós, querendo construir uma torre, não se senta primeiro e
calcula os gastos, para ver se tem o suficiente para terminar? Caso
contrário, 29ele vai lançar o alicerce e não será capaz de
acabar. E todos os que virem isso começarão a caçoar, dizendo: 30‘Este
homem começou a construir e não foi capaz de acabar!’
31Ou ainda: Qual o
rei que ao sair para guerrear com outro, não se senta primeiro e examina bem se
com dez mil homens poderá enfrentar o outro que marcha contra ele com vinte
mil? 32Se ele vê que não pode, enquanto o outro rei ainda está
longe, envia mensageiros para negociar as condições de paz. 33Do
mesmo modo, portanto, qualquer um de vós, se não renunciar a tudo o que tem,
não pode ser meu discípulo!”
REFLEXÃO
Quietude e comodismo:
o que é permanecer no amor?
Queridos irmãos e
irmãs, hoje, nesta perícope do Evangelho de Lucas, Jesus evidencia a
importância do desapego no caminhar de nossa vida. Mas, primeiro, convido-vos a
pensarem sobre esta palavra: caminhar. Estamos vivendo, como Igreja, mais
um Ano Santo Jubilar, e, nele, somos convidados a sermos peregrinos de Esperança.
E, neste mês, dedicado às Sagradas Escrituras, nos é dada a passagem da Carta
de São Paulo aos romanos: “A Esperança não decepciona” (Rm 5,5). Sabendo
disso, quero fazer-vos uma pergunta:
como podemos permanecer
no Amor quando somos convidados a caminhar?
Irmãos,
não “se permanece” estando quieto. Não podemos entender este permanecer como um
comodismo disfarçado de quietude. No mundo que vivemos, a cada dia que se passa
o homem fica mais cômodo, e isso acaba por afetar também nossa espiritualidade.
Jesus, vendo isto, com certeza nos diria como no Evangelho, “Quem não
carrega sua cruz e não caminha atrás de mim, não pode ser meu discípulo”. Ora,
permanecer no Amor é permanecer no caminho, caminho de cruz. Não se pode
dizer que ama, alguém que não se esforça para amar. Não há amor sem força.
Quem
ama sabe muito bem dos riscos de amar. Veja bem: se um homem ama uma mulher, não
deverá ele se esforçar para conquistá-la? E se alguém ama seu amigo não deve se
esforçar para compreendê-lo e caminhar junto com ele? Irmãos, para amar
verdadeiramente alguém é necessário se desapegar de muitas coisas, porque o
amor exige desapego. E esta máxima está presente no Evangelho de hoje, quando
Jesus diz:
qualquer um de
vós, se não renunciar a tudo o que tem, não pode ser meu discípulo!”
E,
aqui, Jesus ainda acrescenta: renunciar tudo o que temos. Para elucidar
melhor, deixem que vos conte uma história:
O
viajante e o ancião
Um certo
viajante estava caminhando em direção à sua casa, depois de uma longa viagem de
trabalho. Costumava ele andar de “carona” com um senhor que sempre lhe levava
até o local de seu trabalho, pois lá, este senhor era dono de um mercado. No
entanto, dessa vez, o senhor não apareceu no ponto de encontro onde geralmente ficava.
O viajante sempre andava levando uma bolsa, cheia de mantimentos seus. Nesse
mesmo dia, voltando para casa, ele encontrou um ancião, sujo, faminto e
cansado. Quis mudar de rota, mas logo foi surpreendido pelo grito do ancião: “por
favor, ajude-me”. O viajante, então, mesmo não querendo foi ajudá-lo. Aproximou-se
dele e percebeu que estava tão frágil a ponto de não conseguir andar. Por estar
há dias sem se alimentar, ficou magro e desnutrido. Foi então, que num ato de
amor, o viajante deu o pouco de alimento que lhe sobrava, deixou sua bagagem na
beira do caminho e pôs o ancião em seus ombros. Os dois caminhavam, mas era o
viajante que prestava sua força. Ao fim, chegando no seu vilarejo, levou o
ancião até sua casa e alimentou-o. Depois perguntou o viajante onde o ancião
morava, e, para sua surpresa, disse ele: “eu moro do outro lado da praça. Sou o
senhor que tantas vezes lhe levei de carona para a cidade vizinha. Fui
assaltado, roubaram meu mercado e meu transporte. Eu estava com fome e não
tinha mais forças até que você apareceu e me ajudou.
Vejam,
irmãos, o quanto o amor precisa de esforço: teve o viajante que caminhar por si
e pelo ancião. Vede também o quanto o amor precisa de desapego: teve o viajante
que deixar sua bolsa para levar o ancião. A beleza do discipulado – do seguimento
a Jesus – é fazer como Ele nos ensinou, renunciando a nós mesmos, pegando a
nossa cruz de cada dia e segui-lo. São Francisco de Sales nos ensina que é
necessário nos desapegar dos bens, os quais ele divide em bens externos
(riqueza, posses, família etc.), bens do corpo (beleza, saúde,
vitalidade etc.) e bens da alma, do coração. Sem esse desapego o nosso
caminho ficará mais pesado e, assim como o viajante não conseguiria carregar o
ancião com a bagagem nas costas, nós não conseguiríamos levar com amor a cruz
sem desapegarmos desses bens. É importante saber que desapego não é um “jogar
fora”, mas é saber que nada disso é importante se não nos leva a Deus. Por
exemplo, para os bens externos a família só me é importante o tanto quanto me
leva para Deus, para os bens do corpo, a beleza só me é importante o tanto quanto
me faz contemplar a beleza da criação de Deus, para os bens da alma, a
sinceridade só me é importante o tanto quanto ela me leva e leva os outros para
Deus. Ou seja, o desapego faz parte do permanecer. Permanecem os bens o tanto
quanto eles me fazem permanecer em Deus.
Permanecer
no amor é, portanto, permanecer no caminho, e permanecer no caminho é andar sem
se desviar da meta, que é o Senhor. Não confundamos o permanecimento
com esta doença que chamamos de comodismo. O comodismo nos trava, o amor
nos leva. Deus amou e, por isso, caminhou até o fim de sua vida, negando
honrarias e abraçando o sofrimento. Não sejamos tolos ao pensar que amar é fácil,
porque, muitas das vezes, sinônimo de amor é sofrer.
Querem saber o
quanto é necessário amar e sofrer? Vejam Cristo na cruz: Ele lhe dirá.
Que possamos nós
seguir caminhando como verdadeiros peregrinos e não nos acomodemos com as
sombras das árvores, pois o madeiro que nos salva é a cruz.
In Cor Iesu,
+ Cardeal Vitalli
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